Brincavam três seres — duas crianças e um cão sem nome

O cão corria livre. As crianças, não tanto.

📖 Autor:
vmlage
📅 Publicado em:
22/04/2025
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Brincavam três seres — duas crianças e um cão sem nome.
A cena, para um olhar apressado, era a da alegria. A da infância.
Mas algo se movia ali… algo subtil, quase invisível. E perturbador.

O cão movia-se com graciosidade. Corria, saltava, rodopiava com a leveza de quem não se pensa, de quem não se observa, de quem não foi ainda domesticado pelo medo. A energia fluía nele como um rio sem margens.

Já as crianças… hesitavam.
Não nos movimentos, mas na alma desses movimentos.
Saltavam, sim. Riam, sim. Mas a energia tresandava a hesitação, a julgamento silencioso, a autoconsciência. A insegurança infiltrada.
Era visível: brincavam dentro de uma caixa.

Não era uma caixa física. Era a caixa invisível do habitat.
A cunhagem da infância — aquilo que se grava nos primeiros anos, como uma BIOS que prepara o corpo para arrancar… mas que limita, para sempre, os caminhos que podem ser percorridos.

O ego ainda nem tem nome nessa idade. Mas já está presente.
Moldado pela voz dos adultos, pelos limites impostos, pelos gestos cortados.
“Senta-te direitinho.”
“Não incomodes.”
“Meninas não gritam.”
“Isso não é coisa de rapaz.”
“Olha que estás a ser feio.”

E pouco a pouco, o Eu recua.
O corpo deixa de se expressar com verdade.
A alma instala-se num modo de sobrevivência.
E a brincadeira — que deveria ser libertação primária — transforma-se numa performance programada.

Vi isso nos olhos daquelas crianças.
E vi também o que pode vir a ser o seu futuro: uma vida inteira a tentar desmontar o que lhes foi instalado nos primeiros cinco anos.

Mas talvez, um dia, possam sair da caixa.
Talvez encontrem o silêncio onde o Eu ainda respira.
Talvez reaprendam com os cães — esses mestres do agora — o que é ser corpo, sem medo.
O que é brincar, sem repressão.
O que é viver, sem se vigiar.

E talvez, nesse dia, brinquem como se nunca tivessem sido ensinadas a deixar de brincar.

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